quinta-feira, 17 de março de 2022

Too good at goodbyes

Desde que o mundo é mundo, colocar mertiolate na ferida, dói. Assim como passar álcool. Mas nem toda dor sob o machucado aberto faz sarar.
Eu cresci ouvindo coisas sobre mim que eu queria acreditar que não eram reais. Pessoa difícil, insuportável, convivência complicada, descontrolada, sem coração. Toxicidade alta, sempre disseram e eu nunca ouvi. Sempre me recusei a acreditar que eu poderia ser tudo isso.
Durante os anos que se passaram, culpei os outros, apontei dedos e colecionei gatilhos. Agora todos estão voltados para mim.
Meu pai, alcoólatra, abusador, violento, rude. Nunca me entregou gentileza, elogio ou parabéns. Acusava mulheres de loucas quando falavam algo que não era o que ele queria ouvir. "Você está ficando louca, não foi assim que aconteceu". Elas acreditavam, eu não. Eu era a louca.
Minha mãe, dona de casa e trabalhadora, escrava da beleza branca e do sonho americano. Nunca me entregou gentileza, elogio ou parabéns. Me acusava de comer demais aos 12 anos e notas boas nunca eram frutos de esforço ou perspicácia. "Não fez mais do que a sua obrigação".
Meu irmão caçula tinha tudo e não fazia nada, mas a boca enchia pra falar quem era, na verdade, a privilegiada. "Ele é moleque, só está brincando com você". "Ele é moleque, não precisa aprender a lavar as próprias cuecas". Nada mudou até hoje.
Louca, gorda, reclamona e privilegiada. Ou observadora, criança e esforçada?!  Tantos títulos, todos antes dos 18 anos. Eu deveria receber um prêmio, você não acha? Eu te respondo: não, ninguém acha.
Na verdade eu deveria ser menos dolorida. E deveria aceitar melhor as brincadeiras. Deveria deixar de ser folgada e me esforçar mais. Ser menos tóxica. Ou não daremos certo. Pela terceira vez. Coincidência? Não, eu não acredito em coincidências.
Estou encarando hoje cada gatilho e me pergunto qual deles está carregado. E qual deles vai disparar primeiro.
Não sei mais quem sou ou o que quero ser, aonde estou e pra onde vou. Só sei quem eu fui até aqui e por onde vim. Só sei pelo que eu passei.
Eu estou sim dando o meu melhor, apesar de ninguém achar que estou. "Não faz mais do que a sua obrigação", diria o passado.
Dizem que eu sou orgulhosa demais pra pedir desculpa, logo eu que passei longos anos só fazendo isso. Mas esse gatilho não disparou e eu tentei pedir desculpa. Mas ainda sim é insuficiente. Tudo é insuficiente.
Calar, engolir as palavras e o choro. Assim minha mãe me ensinou há muitos anos. Eu não imaginei que na minha vida adulta, aos 25 anos, com uma profissão que eu nunca quis pra mim, eu ainda teria que calar e engolir a bola gigante que se forma na minha garganta todas as vezes que eu acho algo injusto. Mas as opções são: calar e engolir ou surtar e ser louca, ingrata, folgada, tóxica e que acha que está sempre com razão.
Razão: capacidade do pensamento dedutivo, realizado por meio de argumentos e de abstrações; a faculdade de raciocinar, de ascender às ideias. Talvez eu não tenha tamanha capacidade de pensamento dedutível que possa compreender que a dor do outro é maior e deve ser mais aceita do que a minha.
Talvez eu ainda não tenha entendido que empatia só é importante quando eu der ao outro, não quando eu buscar receber.
"A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse". E ninguém está nem aí se vai doer dizer que você era melhor com remédio. Ninguém perguntou se você estava bem por dentro tomando o remédio, o importante é que você estava bem por fora e com os outros. O importante é que você estava mais suportável.
Eu não queria mais esse peso sobre mim. O peso de tentar ser pelo menos suficiente pra todo mundo. Porque eventualmente todos percebem que eu não sou e isso é inaceitável aos olhos de quem criou tanta expectativa com a sua existência.
Nem boa filha, nem boa irmã, nem boa madrinha, nem boa tia, nem boa namorada, nem boa médica, nem boa estudante, nem boa amiga. Talvez nem boa pessoa. Será que pelo menos eu sou boa em existir?
Há muito tempo eu luto pra resistir a mim mesma, aos meus fantasmas, as minhas dores, ao profundo pesar que é ser eu. Todos os dias tento me odiar menos, surtar menos, não tentar de novo aquilo que um dia deixou de ser uma opção. E agora é de novo.
Isso tudo é um grito. De socorro. De desculpa. De adeus. Ou só um desabafo.

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