sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Transparência

Clara pegou o celular e digitou número por número. Tudo se esquece, menos um número de telefone. Passou alguns segundos impedindo a tela de desligar e foi atraída pelo verde. Prendeu a respiração.
"Oi, tudo bom? Cruzei com você ontem e resolvi te ligar. Estranho você não se lembrar, pensei que tivesse me visto. É, provavelmente não me reconheceu". Ela esqueceu de mencionar que o encontro foi no sonho da noite passada. Ao ouvir a voz do outro lado da linha responder ao seu diálogo, expirou como se precisasse de um ar totalmente novo em seus pulmões.
"Mas não importa, me conta de você!" - precisava desesperadamente ouvir mais uma vez aquela voz, renovar a memória. "É... sobre o que tem feito, que músicas têm ouvido, onde está trabalhando, essas coisas" - aparentemente não nos conhecemos mais, ela pensou. E se não se conhecem, porquê o mesmo sentimento antigo, Clara?
"Sim, trabalhando. Eu também, claro. Preciso ir também. Ok, fica bem também. Tchauzinho."  - Tchauzinho? Que porcaria de despedida, pensou.
Foi 1 minuto de conversa - se é que podemos chamar o monólogo de Clara assim. Veio o silêncio e nele ela ficou. Se deixou meditar por alguns minutos no tom, nas nuances, nos sobressaltos. Esforçou-se para decorá-los. Sabia que o pouco tempo e o esforço unidirecional significavam algo.
Onde estava o frio na barriga? Antes a pré-síncope era certa. Agora, era só decepção. Talvez seja isso que o tempo faça com os sentimentos que ficam mofando dentro de um baú escondido no coração.
Clara é verão e a voz foi inverno. Eu costumava ser seu sol num dia chuvoso, pensou. Mas a voz não se lembrava mais. Nem disso, nem de nada.
Era hora de guardar o coração, e o contato, mais uma vez. Mas não jogou fora. Caso queira retornar, pensou.

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